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Até que ponto existe respeito para a liberdade artística? Existe uma ruptura entre a livre criação artística e a censura? Deveria ser permitida a censura em equipamentos culturais sólidos desde a década de 1990 no Rio de Janeiro? A reportagem se arrisca a dizer que, se estivesse vivo, o artista chileno Jorge Selarón estaria insatisfeito sobre a permissão da Prefeitura do Rio em realocar seis azulejos na famosa Escadaria Selarón, na Lapa, que ele mesmo fez. A alteração da obra de arte, que é conhecida internacionalmente, está indignando artistas plásticos que questionam a intervenção por motivos religiosos.
A mudança será feita pelo Instituto Rio Patrimônio da Humanidade e da Coordenadoria Executiva de Diversidade Religiosa (IRPH) e constará na realocação de seis azulejos com inscrições árabes e que remetem a palavra Allah (que significa Deus). Esses azulejos ficam perto do chão e serão retirados e colocados em novo espaço, em um local que fique acima da cabeça dos visitantes.
A mudança acontece após a visita de um turista e influenciador digital da Arábia Saudita na famosa escadaria da Lapa. Para o trâmite, a situação ganhou apoio da Sociedade Beneficente Muçulmana do Rio de Janeiro e da Liga Independente dos Guias de Turismo do Rio de Janeiro. "Para nós, essa mudança significa tudo, porque tudo que diz respeito a Deus é muito importante para nós. As pessoas podem fazer qualquer coisa, não jejuar, não rezar, não praticar a religião. Essa decisão é muito importante e irá estreitar nossa relação com a prefeitura porque estamos vendo o interesse em tentar solucionar um problema nosso", explicou Mohamed Zeinhom Abdien, presidente da sociedade.
A questão de o nome estar no chão gera dúvidas entre os artistas plásticos, como Leila Barboza, que é Mestre em Ciência da Arte da Universidade Federal Fluminense (UFF), que frisou que existe um preconceito que o chão é um lugar menor. "Esse pedido vem de uma cultura que o tapete é uma obra de arte. Eles se ajoelham no chão, o que é considerado sagrado. A religião cristã tem uma relação muito grande com o céu, mas tem outras que têm uma relação com chão, de solo sagrado, explicou.
A especialista ainda frisou que uma medida dessa abre um precedente para novas intervenções, o que seria triste. " O artista faleceu, essa escadaria está tombada e deveria ser preservada como ela está. Inacreditável isso estar acontecendo. Poderia deixar a obra e colocar uma placa que teve um movimento de tentativa de retirada, mas realocar jamais", completou a moradora de Niterói.
A Prefeitura do Rio de Janeiro divulgou nota em que, segundo os preceitos da religião muçulmana, o posicionamento dos azulejos não seria adequado, pois objetos que contenham o nome de Deus não poderiam ficar próximos ao chão, onde podem ser pisados. "Por se tratar de uma obra de arte e de um bem tombado, havia a necessidade de sustentar a decisão na Lei e tomar uma medida que não interferisse muito no estado em que o artista deixou sua obra. Por isso, quando levamos ao Conselho, foi entendido que se tratava não só de uma questão de patrimônio cultural. O próximo passo será a reunião dos órgãos da prefeitura, para que vejam, tecnicamente, como será feita a remoção, a realocação, e a reposição nas lacunas que ficarão com a retirada dessas seis peças, explicou Laura Di Blasi, presidente do IRPH.
O artista plástico com especializações pelo Parque Lage, Rodrigo Pedrosa, chamou atenção para a necessidade de diálogo para tratar sobre o assunto. "Não sei o grau de ofensa que isso implica para a religião. Acho que deveriam pelo menos discutir e conversar mais amplamente sobre a alteração. Poderia ter uma discussão mais ampla e falar de religião e dos sentimentos das pessoas", concluiu.
A diversidade religiosa foi um argumento usado pelo presidente da Liga Independente dos Guias de Turismo do Rio, Arnaldo Bichucher, para justificar o feito. "O Rio de Janeiro precisa incentivar cada vez mais o respeito à diversidade religiosa. Eu, por exemplo, sou judeu e vejo essa mudança com alegria porque significa respeito a uma religião. Além disso, esse tipo de movimento vai ser visto com tão bons olhos que vai atrair mais turistas para a cidade. Esse pode ser um grande exemplo que podemos dar ao mundo, ainda mais agora que acabamos de ver Exu sendo campeão do desfile das escolas de samba", ponderou.
O professor de Teoria e História das Artes, Diego Ramos, explicou que as obras de arte urbanas têm uma premissa importante, diferente das obras que estão em museus; em que a pessoa vai até o museu com um contexto de ter acesso a um tipo de arte e pensamento. "Diferente disso a arte urbana, ao meu ver, é problemática. Hoje em dia, temos tido muitos questionamentos sobre esculturas que são vistas como racistas, porque normalmente representam uma elite branca, escravocrata por exemplo. Tivemos casos de estátuas que foram quebradas. Acho que quando uma obra de arte urbana, que está exposta ao público que não necessariamente de aprender e essa pessoa se sente ofendida, e isso fere algum direito dela; essa arte precisa ser contextualizada. Uma placa pode explicar essa obra", contextualizou.
O também artista plástico, pintor e desenhista ainda completou com um questionamento: qual o valor aquela obra dialoga? "Se é uma obra de arte que tem um valor cultural e histórico relevante é preciso destacar esse valor e multiplicar, fazer a população entender. Acho que é passível de remoção e podemos tirar uma obra de arte daquele contexto que foi inserida. Isso é rotineiro na história da arte, deslocar esculturas, pinturas e murais quando ferem algum direito de alguém. Isso dá margem para novos questionamentos e é preciso de uma fundamentação e análise de cada caso", frisou.
De acordo com a Prefeitura do Rio, os azulejos serão colocados numa parte da escadaria Selarón onde ainda existe uma parede branca, numa posição privilegiada para a visualização das peças.
DETALHES DA ESCADARIA
A Escadaria do Convento de Santa Teresa é tradicionalmente conhecida como Escadaria Selarón e é um dos pontos turísticos mais visitados do Rio de Janeiro. A escadaria tem 125 metros de comprimento, 250 degraus e mais de dois mil azulejos. A obra de arte foi feita pelo ceramista chileno Jorge Selarón, que morava em frente à escada e, em 1990, começou a modificar o local. De acordo com a RioTur, essa é a terceira atração mais buscada pelos turistas, atrás somente do Cristo Redentor e do Pão de Açúcar. Em janeiro de 2013, Jorge foi encontrado morto, na própria escadaria, aos 65 anos.
NITERÓI TAMBÉM TEM UMA ESCADARIA COM 125 DEGRAUS
A cidade de Niterói também tem um local, em Charitas, conhecido como Escadaria do Mosaico. A intervenção artística foi idealizada pela artista plástica Leila Barboza como parte de seu estudo de mestrado. Ela explica que a escadaria tem 35m² de mosaicos de azulejos, além dos degraus, bancos, mesas e painéis que também receberam os ladrilhos. Ao todo são 125 degraus decorados divididos por quatro platôs e 120 pessoas participaram das obras.
O local vai ganhar uma placa de indicação do projeto e passar por revitalização. A artista explicou que em 2019 chegou a conseguir uma emenda parlamentar para restauração, mas em 2020, com o início da pandemia a verba foi destina para o combate ao vírus. "Eu acho que foi pertinente e agora estamos planejando essa restauração e a instalação da placa", finalizou Leila.